Aos
30 anos de idade, o pianista, tratador de piano, compositor e estudante de
música Allan Grando, natural de São Paulo, nos conta qual a relação da
matemática para o seu trabalho de afinador e também para a música em geral.
Compositor de trilhas e peças para piano e orquestra, Allan me recebeu em sua
casa, onde pude degustar um pouco do seu trabalho, além de bater um papo
descontraído sobre este assunto que instiga a nossa curiosidade. A proposta da entrevista seria a de agregar informações ao meu trabalho de Iniciação Científica, que visa estudar a teoria diatônica recente, ou seja, uma nova forma de abordar o estudo de música elementar, partindo de uma visão matemática/geométrica.
Allan
estudou no Conservatório da Lapa, no Dramático Musical, hoje é aluno do último
período de composição da FIAM-FAAM, além disso, foi vencedor do concurso Jovem Solistas na categoria Piano e atribui a matemática como peça fundamental
no seu ofício de afinador e compositor. Vejamos a seguir o que ele me contou
sobre essa astronômica relação.
1 – Há quanto tempo você toca piano e atua como afinador de
instrumentos?
Comecei cantando com uns 5, 6
anos eu ouvia coisas na TV e começava a cantar, ouvia cantores, os Três Tenores nas olimpíadas e tal. Com 7
ou 8 anos eu comecei a tocar teclado e depois eu queria um piano de qualquer
jeito, me encantei porque meu pai começou a me dar aquela coleção do Moreira
Lima de 1997/98, que eram 41 CDs pela revista Caras. Eu comecei a ouvir e me
perguntar: Como pode alguém tocar tão bem? Isso soar tão limpo? Que instrumento
faz tanta coisa ao mesmo tempo? E comecei a juntar dinheiro. Vendi brinquedo,
bicicleta, um anel e mais algumas coisas. Meu pai viu o meu esforço e inteirou
o valor. Com 11 para 12 anos eu consegui comprar o meu primeiro piano, um Fritz
Dobbert. A afinação veio depois porque a situação apertou, meu pai, como muita
gente de classe média, quebra e levanta durante a vida, tipo umas 20 vezes
durante a vida (risos), e com isso não podia pagar um afinador, né? Mas eu fui “meio
maníaco” na minha adolescência pois eu ficava tocando muito e sem orientação
também. Até que eu descobri uma chave de afinar piano embaixo de uma banqueta
de uma professora, uma chave velha, não era profissional, daquelas que mordem a
cravelha e eu disse “posso levar para casa pois eu quero afinar meu piano? ” E
ela disse que tudo bem, acho que eu tinha uns 13 anos. Levei para casa e
desafinei o meu piano inteiro, né? Estourei corda e insisti nisso. Comprei uma
maquininha (afinador) porque não é fácil ajustar, pois o ouvido quer uma coisa
e o temperamento precisa de outra, é necessário encolher os intervalos. Fui
quebrando a cabeça até que eu consegui afinar, e com 15 anos eu afinava para
fora já. Fiz anúncio em jornal e comecei a prestar serviço. Trabalhei em uma
loja com o Rubens, que é meu mestre de mecânica de piano, ele não afina, mas me
ensinou muito de mecânica.
2 – Então você começou a afinar sem orientação? Você foi por
curiosidade, investigando e aprendendo os segredos?
Nenhuma, os segredos, por
exemplo, de você passar um pouquinho e de girar a cravelha para afinar o piano,
você não pode levantar a cravelha só com a chave, forçando para cima sem rodar,
porque o que faz esticar a corda é girar mesmo, pois assim ela trava numa nova
posição. Se você levanta, cria-se uma afinação ilusória, porque você deixa por
um triz para voltar aonde estava ou próximo. O correto é selar a afinação, ou
seja, você passa um pouquinho e puxa a cravelha para baixo, pois ao contrário
de subir, você ainda está deixando uma resistência para cima, uma vontade de
subir a corda, ela guarda alguma energia potencial de querer subir. Algum ou
outro afinador me dizia, “olha você precisa fazer assim e assado”, mas muito
raro.
3 – Qual a média de instrumentos afinados por mês?
Olha, depende, o mercado balança
bastante! A gente tem algumas épocas que são de maior oportunidade para ficar
um pouco melhor financeiramente e até guardar. Tem semanas que afino todos os
dias, às vezes até dois por dia, outras semanas nenhum ou um piano. Já tive
fases de afinar piano direto, 2 ou 3 por dia, mas aí eu não estudava quase
música né, isso era um problema.
4 –Você pode nos dizer a importância dos intervalos da série harmônica
para o processo de afinação de um piano? É comum o uso dessa técnica na
afinação dos instrumentos?
O mais comum é fazer a afinação partindo do Lá
(220Hz) e é usual partir desse lá central. Além de ser a região central do
piano, e ser boa de ouvir, você começa a distribuir o peso, porque quando você
estica um piano, você está adicionando tensão à chapa, a tensão dentro de um
piano é imensa! Um piano de concerto chega à 18 toneladas de tensão das cordas
sobre a estrutura de ferro fundido! Então é comum começar pelo centro da
tensão. Já ouvi dizer, de casos de pessoas que não sabem disso e começam a
esticar de um lado para o outro e arrebentam a chapa no decorrer porque você
cria uma desigualdade entre um lado sem nada e o outro com todo peso e de
repente arrebenta. Pode acontecer. A chapa do piano moderno, de um over de cauda, é um “ x ” que precisa
travar. Se você começa do centro para fora, você está favorecendo esse
movimento, então o piano é feito para começar do meio mesmo. Aí eu vou para as
quintas primeiro, só que com cuidado porque a quinta quer ficar mais aberta, a
gente gosta da quinta mais aberta, talvez seja mais natural, além de ser a
quinta que coincide com a série harmônica e a escala pitagórica, que é a
relação de três para dois, onde você divide a corda em três e pega dois e
parece que a gente quer essa mesmo. Mas se você for por essa, quando você acaba
um ciclo grande, sei lá, de 12 quintas por exemplo, ou o piano inteiro, aí você
vai parar lá nas alturas na última tecla, porque vai ficando muito aberto e a
quinta quer ficar mais aberta ainda do que isso. Quando eu era mais novo já
aconteceu de eu esquecer a máquina e me arriscava a ir de ouvido, eu fazia, mas
já aconteceu da afinação ficar totalmente fora, alta e eu ter que ajustar tudo
de novo. Então, talvez um ponto de equilíbrio para que a quinta não fique muito
alta, a quarta seguinte é um ponto de referência para a quinta anterior. Você
consegue balancear a região plagal ali do V – I, do Sol subindo para o Dó, com
a região autêntica – emprestando os termos do contraponto – elas funcionam como
um próprio espelho mesmo. No contraponto você faz um trecho nessa região da
escala, exemplo: de Dó a Sol e um outro na região de Sol a Dó, então isso se
torna uma medida, a medida de um é o espelho do outro e isso ajuda! A terça,
ela aparece muito, por exemplo quando a gente faz décimas no piano (tocou ao
instrumento uma série de décimas), assim como a sexta, elas incomodam muito
quando desafinadas. Então, boas referências na afinação são as terças, as
quartas, quintas e a oitava principalmente, pois ela é a coisa igual que é
diferente né? Além de ser justa em qualquer lugar, na escala natural, no
temperamento igual e na série harmônica. O uníssono é importante porque no
piano, em algumas notas, nós temos três cordas e é preciso deixá-las iguais,
pois são gêmeas! O Uníssono é ponto de partida, a oitava e as quintas vêm
depois, então o processo de afinação segue a sequência da série harmônica e o
que vai nos indicar se a quinta ficou muito aberta é a terça, que é o próximo
harmônico da série. Portanto, é como se a afinação acompanhasse a série
harmônica, mas claro que quanto maior o número, mais imprecisa a afinação fica,
por exemplo, não se afina por sétimas. E aí voltamos aquela velha questão: a
sétima é dissonância ou não? E dirão: “Ah! É consonância, pois ela está
presente na música popular e no JAZZ, em tudo quanto é estilo”. Mas afine o
instrumento por sétimas então e aí você vai ver se é consonância ou não!
(risos)
5 – A gente pode concluir que se afinarmos um instrumento partindo do
intervalo de quintas e do nosso ouvido, a gente vai cair no que Pitágoras
mostrou para a gente. Portanto o ideal seria, ao afinar um instrumento sem um
aparelho, favorecer uma quinta mais fechada?
Sim, para caber no temperamento. Porque a
oitava coincide em todas essas oitavas, né? A quinta não, ela muda em cada uma
delas, na natural e na temperada. Existe também a escala Mesotônica, que era
formada pelo intervalo de terça, ao invés das quintas, e que não deu certo.
6 – Essa técnica foi você quem desenvolveu e se adequa ao seu estilo ou
foi alguém que te influenciou?
Não, no início eu ouvi isso de outras pessoas
sim. A loja que trabalhei, que tinha o Rubens como dono, logo já me falou sobre
o intervalo de quinta ser usual na afinação. Mas é instintivo, a oitava eu já
pensava como algo regulador, a quinta também, só que essa organização veio
depois.
7 – Você como intérprete, estudioso e pesquisador, pode nos dizer como
vê a matemática interligada à música?
Os primeiros números, se a
gente for pensar lá no tetraktys grego,
se você somar 1 + 2 + 3 + 4 até o dez, você tem todos os números, do 1 até o 4
a gente já tem muita coisa que pode ser associada à música, por exemplo, as
primeiras formas que a gente tem, a forma binária o nome já diz, o que é o
dois? O dois é o princípio da dualidade, que Lawlor cita em sua obra Geometria Sagrada, porque você tem uma
coisa que se opõe a outra. O um está dividido em dois, uma ideia ela contém
duas coisas divergentes e esse princípio em música se encontra no contraste, na
variação, modulação, pergunta e resposta, antecedente e consequente e etc. O
número dois está em tudo, permeia tudo. Nos processos de aumentação e
diminuição, sempre usamos o dobro e metade como referência. O três como
trindade, triângulo, primeiro plano formado e várias outras características, o
três é uma matriz que gera coisas. Você parte de uma ideia, desenvolve e volta
nela. Mas transformada, porque ela passou por um caos, por uma inquietude, uma
antítese e voltou para uma outra tese, que é a síntese. O pensamento ternário é
gerador, porque a partir de uma ideia, você a desenvolve e ela retorna de uma
outra maneira e esse processo continua. O nosso pensamento passa pelo princípio
da dúvida, da dualidade e chega no três que é um pouco mais, pois a conclusão
não é mais a mesma do início. O 4 representa a quadratura, parece que a nossa
vontade é agrupar as coisas de 2 em 2 ou 4 em 4, principalmente na música, 4
compassos, 8 compassos e etc. dá uma sensação de ciclo fechado, na mesma forma
que o quadrado fecha, a quadratura dá uma sensação de início, meio e fim.
8 – Como foi esse processo de relacionar a matemática à música? Foi
influência de alguém ou uma curiosidade individual?
Quando eu tinha uns 14, 15
anos, eu comecei a estudar umas Cirandas de Villa-Lobos, a partir das gravações
do Moreira Lima que citei anteriormente, e eu ficava ouvindo aquilo e ali tem
muitos acordes aumentados, sextas francesas e disposições que eu só fui saber o
que era depois, mas isso instigou a minha curiosidade. Ao tocar algumas
cirandas com a tampa do piano aberta, eu percebi que numa tétrade tocada na mão
direita acompanhada por uma linha de baixo na mão esquerda, os martelinhos
respeitavam uma disposição de um afundado, três não afundados, um afundado,
três não afundados e outro afundado e eu ficava pensando, nossa é geométrica a
coisa! E essa tensão resolvia-se em outro acorde também simétrico pelos
martelinhos e eu ficava maravilhado com isso, porém, não se passava de uma
impressão visual. Sabe quando você calcula que possa existir uma relação, mas
você não vai adiante? Depois com a faculdade, conhecendo mais de harmonia e
alguns estímulos que a gente teve lá, alguns professores que prezam por essas
relações pitagóricas, harmonia das esferas e relações do nosso mundo aqui e as
distancias dos astros e que trazem isso para a música.
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